Quando falamos
em normalidade, quais
são as imagens e as idéias que o seu cérebro projeta?
Em que você pensa?
Existe um senso comum
sobre a normalidade como algo estático, modelo a ser
seguido, uma espécie
de perfeição essencial.
Será que é mesmo
possível estabelecer um critério fixo de normalidade, que não
se transmuta ao longo
do tempo e de acordo com a circunstância?
“Estamos mais
preocupados em compreender a normalidade, em fixar o
seu conceito, do que
propriamente em defini-la. Em sua essência complexa,
o problema seria
prejudicado por uma definição que procurasse fixá-lo em
palavras, desde que
se trata, na realidade, de um conceito essencialmente
dinâmico. Nessas
condições, a definição não auxiliaria em nada a
compreensão do
assunto. O que importa, sobretudo, é o conhecimento
dos fatores a tomar
em consideração quando falamos em normalidade,
pois deles depende a
limitação do conceito e a base de qualquer tentativa
definidora” (DOYLE, 1950).
Definição do dicionário Michaelis para ‘normal e
patológico’:
normal. nor·mal adj m+f 1 Conforme a norma; regular: O juiz aplicou a
sanção normal ao
caso. 2 Que é comum
e que está presente na maioria dos casos; habitual, natural, usual:
“[…] essa dor que
eu estou sentindo no braço não pode ser normal”(NR). 3 Tudo que é
permitido e aceito socialmente:
Divorciar-se é prática bastante normal hoje em dia.
Patológico pa·to·ló·gi·co adj 1 MED Relativo à
patologia. 2 Que denota doença; doentio,
mórbido. ETIMOLOGIA der de patologia+ico2,
como fr pathologique.
O que é importante deixar claro é
a relatividade da normalidade, que representa
realidades distintas e
contingenciais, que fazem com que a sua representação seja
diferente em casos distintos, de
acordo com a perspectiva pela qual enxergamos.
A normalidade e a patologia,
portanto, não são universais. Quando falamos da
Humanidade, existem diferentes
aspectos que podem ser encarados para pensá-las,
sejam eles orgânicos,
fisiológicos, psicológicos. Os três possuem relação entre si,
embora cada um tenha suas
particularidades e diferentes critérios para definição
de normalidade.
No caso da Psicanálise, por
exemplo, a noção de normalidade não é uma
ferramenta. Com os estudos de
Freud acerca da neurose, percebida por ele com
muita frequência nas pessoas, a
noção de normalidade psicológica assumiu posição
muito delicada, na medida em que
diferentes distúrbios ou comportamentos gerados
em uma realidade tão contraditória e com problemas
sociais tão profundos.
Todo patológico é anormal, mas o
inverso não é sempre verdadeiro. O anormal
pode ter caráter adaptativo, não
correspondendo necessariamente a sofrimento e
impotência (pathos). Por
isso, é importante o cuidado no trato com esses conceitos
de normalidade, anormalidade e patologia, termos de
profunda complexidade.
Para Augusto Comte, pai do
pensamento positivista, o excesso é constitutivo
da doença, ou a falta de
vivacidade do corpo. A ausência de estímulo, necessário à
saúde, conduziria ao estado de
doença.
Há ainda outros autores que
consideram outros aspectos e apresentam outras
explicações, como Claude Bernard e Leriche.
Todo patológico é anormal, mas o
inverso não é sempre verdadeiro. O anormal
pode ter caráter adaptativo, não
correspondendo necessariamente a sofrimento e
impotência (pathos). Por
isso, é importante o cuidado no trato com esses conceitos
de normalidade, anormalidade e patologia, termos de
profunda complexidade.
Uma abordagem curiosa, por
exemplo, é frequente entre pensadores e literatos
do início da Modernidade, que
relacionavam a normalidade à futilidade, à falta de
profundidade do ser, a ser
supérfluo e não contraditório. Diferente dos pensadores
da Filosofia Clássica, eles não almejavam a
normalidade, mas fugiam dela.
“[...] o homem normal está
personificado pelo homem da massa, “o que
nos rodeia aos milhares, o que
prospera e se reproduz no silêncio e na
treva”; é o homem sem ideias, sem
personalidade, por essência imitativo,
apto a viver como carneiro de
rebanho, refletindo a rotina social, aceitando
os preconceitos e dogmas úteis à
sua condição doméstica; a alma desse
homem medíocre não tem nada de
espontaneidade, é um reflexo da alma
da sociedade em que vive, porque
a característica deste homem é imitar a
quantos o rodeiam, pensar com a
cabeça alheia, e ser incapaz de formar
concepções e ideais próprios;
deste modo, ele é o espírito conservador
do grupo, interessado em manter
os seus hábitos, que lhe amenizam o
esforço de viver” (DOYLE, 1950).
Tanto a idealização da
normalidade quanto o seu desprezo, portanto, não correspondem
a uma visão equilibrada do que a
questão trata. É muito difícil, hoje,
sustentar uma ideia estática de
saúde e doença.
Vamos pensar a respeito?
Um dos aspectos a ser considerado
para o estabelecimento do normal é a
pressão cultural, visto que as
culturas estabelecem seus modelos de normalidade e
anormalidade, questão que tirar o
normal como a média não leva em consideração.
Se tirássemos pela média, aqueles
que se destacassem do ponto de vista da
adequação social ou do acordo com
as regras, mesmo em relação à sua capacidade
intelectual, seriam considerados
deslocados e anormais (AJURIAGUERRA;
MARCELLI, 1986).
“O normal, como o ideal
pressupõe, primeiramente, é um determinado
sistema de valores. Cabe
questionar, primeiramente, como seria escolhido
um sistema de valores padrão para o estabelecimento
da normalidade”. (AJURIAGUERRA; MARCELLI, 1986 apud DELATORRE et al.).
A apreensão dinâmica do que seja
normalidade e patologia está
associada à capacidade de retomar
o equilíbrio do estado de normalidade, o que
requer um processo de se adaptar
à determinada condição. Essa adaptação pode ou
não gerar conformismo e
submissão, gerando outros problemas (AJURIAGUERRA;
MARCELLI, 1986).
Winnicott (1967) analisa a
tendência dos psicanalistas no entendimento da
normalidade que, segundo o autor,
caminha no sentido de pensar a saúde como
ausência de distúrbios
psiconeuróticos. O autor, no entanto, defende a adoção de critérios mais sutis,
considerando a
normalidade em termos de
liberdade no âmbito da personalidade, da capacidade
de possuir confiança, constância,
liberdade em relação à autoilusão, estando relacionada
à saúde, à autonomia e ao
livramento em relação à dependência. A vida
saudável seria caracterizada,
ainda, por momentos e sentimentos positivos e negativos,
conquistas e frustrações
(WINNICOTT, 1967 apud DELATORRE et al.).
Para Freud, no entanto, a ênfase
é dada ao desenvolvimento psíquico sobre a
classificação das doenças. O
trunfo do Pai da Psicanálise, portanto, é que os mecanismos da normalidade e da
neurose são os mesmos, sendo diferente o seu uso e a sua flexibilidade, não
havendo continuidade entre eles (BERGERET, 1996).
Foucault vai enxergar
a doença não apenas
por seu viés
negativo, mas pela positividade subjacente, na possibilidade gerada
pelo patológico, na
medida em que o normal e o patológico se complementam, e
não são antagônicos.
“Isto é, retornando
às fases anteriores da evolução, a doença faz
desaparecer as
aquisições recentes e redescobre as formas de conduta
ultrapassadas. A
doença apresenta-se não como um ‘retrocesso’, mas
como um processo ao
longo do qual se desfazem as estruturas evolutivas.
Nas formas mais
benignas, há dissolução das estruturas recentes e, no
término da doença ou
no seu ponto extremo de gravidade, das estruturas
mais arcaicas.
Para
Foucault, portanto, a doença não é um déficit que
atinge radicalmente
esta ou aquela faculdade; há, no absurdo do mórbido,
uma lógica que é
preciso ‘desentranhar’, pois ela é, em última instância,
a própria lógica da
evolução normal. Ele visualiza o patológico ou a
doença não como uma
essência contra a natureza da ‘normalidade’, mas
sendo a própria
natureza dessa normalidade, num processo invertido, o
qual se firma numa
sociedade que não se reconhece como seu artífice”
(WANDERLEY, 1999).
A normalidade ultrapassa a ideia
de frequência, na medida em que a normatização
“só é a possibilidade de uma
referência quando foi instituída ou escolhida
como expressão de uma preferência
e como instrumento de uma vontade de
substituir um estado de coisas
insatisfatório por um estado de coisas satisfatórias”
(CANGUILHEM, 1982).
16